Transmutados- O Desconhecido de Vanessa Tourinho Capítulo II parte 1
Continuação dos Capítulos disponibilizados pela nossa amada
Vanessa Tourinho
II- SEGREDOS
“Nada
nos deixa tão solitários quanto nossos segredos.”
[Paul
Tournier — Secrets]
A primeira vez que tudo aconteceu
foi bem difícil. Ao saber que poderia ler a mente de amigos, fui tomada por uma
compulsão. Ficava horas acordada, vasculhando cada lembrança, cada pensamento,
cada visão que as mentes me davam. Muitas vezes me decepcionei com pessoas
próximas em outras, me surpreendi.
Confesso que a mente humana é algo
impressionante, e que a cada flash de
memória eu me viciava. Como uma usuária de drogas, aquilo me satisfazia, me
bastava. Era mais importante que qualquer coisa. Era mais interessante que
assistir a qualquer série de TV, ler qualquer livro ou assistir a qualquer
filme. Era mais essencial do que me alimentar ou me hidratar. Entrar nas mentes
é conhecer o verdadeiro caráter de uma pessoa, é conhecer sua essência, mas,
como um jogo, uma hora, tudo isso me cansou.
Depois de reabilitada do meu vício,
passei a ver que roubar tais pensamentos ou descobrir segredos alheios era
errado, e procurei ser mais cautelosa, afinal de contas não gostaria de ter
alguém vasculhando meus segredos e buscando maneira de se divertir com eles.
Como não sabia dominar meus poderes, tentei ignorar tudo que me vinha à cabeça.
Não foi fácil.
Imagine uma sala de aula cheia de
adolescentes, e sem a supervisão de um professor. Era assim que me sentia.
Minha mente era uma sala de aula,
com um seleto e barulhento grupo de adolescentes. Meu próprio controle era o
supervisor deles.
Nas primeiras semanas meus
adolescentes ficaram livres e à vontade entre eles, fazendo uma bagunça em
minha mente. Com o tempo e com a prática, consegui apagar cada voz e criar um
bloqueio para cada pensamento — algo nada fácil, levando em conta o número de
pessoas com quem convivia, mas me sentia aliviada, e isso bastava.
A parte de sair de meu corpo foi a
mais difícil, me pegou de surpresa.
Minha maior dificuldade foi entender
como me desprender do meu corpo. A resposta não pareceu tão complicada depois
que eu descobri, mas antes de conseguir entender, minhas tentativas foram
semelhantes às sensações boas de uma meditação. Sentia-me como o Homem-Aranha,
tentando descobrir como ejetar suas teias. Depois de algumas tentativas
frustradas aprendi que a questão era o autocontrole, era apenas livrar meu
cérebro de pensamentos e sentir-me livre, depois disso, tudo foi questão de
prática.
Meu primeiro “voo” foi fácil, afinal
eu não poderia me machucar ou cair. Eu era apenas um fluxo de energia.
Atrás da porta do meu quarto havia
um pôster com a imagem da praia de Copacabana, que eu tinha comprado durante
minha primeira e única viagem ao Rio de Janeiro, quando participei de um
congresso para estudantes de letras. E foi para Copacabana que decidi ir. Foi a
experiência mais incrível de minha existência. Atravessar cada obstáculo e voar
quase que na velocidade da luz, sem medo e sem culpa, foi conhecer o verdadeiro
significado da liberdade.
Depois de entender e aprender a
lidar com minhas mudanças, decidi que precisava contar meu segredo a alguém.
Nunca fui boa em guardar meus segredos, sempre me senti pequena
demais para guardar tais pensamentos, sempre senti a necessidade de
compartilhá-los e foi justamente por isso que precisei contar a alguém tudo que
acontecera comigo.
Mas precisava me preparar para
revelar esse segredo e também precisava escolher a pessoa certa, ou, o máximo
que eu conseguiria seria ser internada em um hospital psiquiátrico.
Escolhi minha amiga Fernanda como
confidente. Ela era a pessoa mais prudente que eu conhecia e a mais sincera —
pude perceber isso por seus pensamentos. É do tipo da pessoa que diz o que
pensa, mas sempre com muita educação e calma, ainda que às vezes se mostre um
pouco impulsiva. Então pela noite, depois que eu saí da universidade fui a casa
dela. E quase saí voando — quando se tem a verdadeira noção de velocidade,
correr já não é o suficiente.
— Fernandaaa! — gritei apertando a
campainha, como se apertá-la já não bastasse.
Para minha sorte a própria Fernanda
veio me atender, isso deveria ser um bom sinal, não é?
— Meu Deus, Luisa! Por que a pressa?
Você está fugindo da polícia? — disse ela brincando, quase gargalhando enquanto
ajeitava seus cabelos tingidos de castanho, atrás das orelhas.
— Oi, Nanda! Desculpe, mas é que
preciso falar com você. Sua mãe está em casa?
— Oi, Luisa! — gritou a mãe de
Fernanda, Dona Sônia, da cozinha. — Veio jantar conosco?
— Não, dona Sônia, obrigada! —
gritei em resposta, enquanto Fernanda me puxava para dentro de sua casa.
— Não quer nem um copo de suco? —
Dona Sônia, insistiu. — É de maracujá, sei que você gosta.
— Não, mãe, a Luisa não quer nada! —
Fernanda respondeu por mim — Ela veio conversar comigo.
— Claro, claro. Vocês e seus
segredinhos!
Fernanda sorriu para mim,
nitidamente preocupada. Segurou minha mão e me levou até seu quarto. No caminho
seus pensamentos invadiram minha mente, de forma descontrolada. “O que será que você aprontou Luisa?”,
ela pensou. “Por favor, não me venha
dizer que está gravida, depois de tudo que conversamos!”
Sem me dar conta do que estava
fazendo, puxei minha mão da dela e a olhei indignada.
— Como você pode pensar isso de mim,
Fernanda? — eu disse — É claro que não estou grávida! Além do mais, quem seria
o pai?
— Ué? Como você...? — ela me olhou
assustada.
— Esqueça. — eu disse mais
controlada, só então me dando conta do que tinha feito. — Vamos para seu
quarto.
Fernanda seguiu em direção ao
quarto, ainda assustada. Sentou-se em sua cama e me esperou calada. Como eu
estava muito ansiosa e preocupada com sua reação, fiquei andando de um lado
para o outro esperando a coragem chegar. Passaram-se alguns segundos, então ela
decidiu falar por mim.
— Luisa, você está me preocupando. O
que aconteceu? — Fernanda perguntou, deixando um quê de apreensão escapar no
tom de sua voz. Tive vontade de escutá-la mentalmente, mas outros pensamentos
além dos meus me deixariam nervosa, e bloqueei as vozes de minha mente, com
mais força, assim que notei minha resistência se enfraquecendo.
Foi quando me dei conta do que
estava fazendo. Quem acreditaria em mim? Contar a alguém que você consegue
escutar os pensamentos alheios não é algo sensato, é loucura.
Arfei tentando me livrar do peso
desse segredo.
— Luisa! — Fernanda gritou. — Você
está bem? É sério, você parece que vai desmaiar.
Usei meu melhor sorriso, ou melhor,
uma tentativa do que seria esse sorriso, e, de maneira falsamente descontraída,
ri.
— Estou bem, sim. Desculpe lhe
assustar. Só estava preocupada com minhas notas.
Fernanda concordou
compreensivamente.
— Elas caíram muito, Luisa. Você
sempre tirou boas notas, o que aconteceu? Você quer conversar sobre isso?
Coloquei minha bolsa na mesa do
computador de Fernanda e fui me sentar na cama.
— Acho que ando estressada com tanto
trabalho. — menti, abraçando o Vesgo, um sapinho de pelúcia que tinha olhos
tortos. Fernanda o ganhara do namorado no Natal.
— Você não precisa se estressar
tanto. Seu trabalho com o professor Adriano é algo que você precisa rever. É um
trabalho desnecessário e sem remuneração. Aliás, ficar lhe usando como
assistente é quase um trabalho escravo.
— Eu gosto de trabalhar com ele.
Ajudá-lo a fazer os planos de aula para a turma de calouros da manhã,
fiscalizar as avaliações e ir a biblioteca tirar cópia dos livros que ele
usa... Não é nada de mais.
— É um trabalho desnecessário, Lu! Você nem quer ser professora! Pensei que você
quisesse trabalhar como revisora e tradutora.
— E quero, mas preciso me sustentar,
Fernanda. Trabalhar como monitora, na universidade, vai dar um dinheiro bom, e
vai me manter até que eu consiga uma vaga naquela editora no Rio de Janeiro.
— Aquela editora onde não é nada
fácil entrar? Você não vai desistir desse sonho nunca, pelo visto! Certo,
certo, mas não foi para falar sobre isso que você veio até aqui, foi?
Olhei Fernanda com atenção. Ela me
conhecia muito bem, e, às vezes, eu me esquecia disso.
— Errr... Só vim conversar com você.
Não lhe vi hoje, pela manhã, na universidade. Passei na sala da sua turma de
Biologia, mas o Alexandre me disse que você não pôde ir.
— Na verdade eu não quis. Estava irritada com
o Alex. Você viu a nova aluna da turma? Ela e Alex ficaram amigos. Não é que eu
não confie no meu namorado, sabe? É que não confio nela! Naquela oxigenada!
Acredita que ela teve a cara-de-pau de me dizer que achava o Alexandre um cara
gostoso!
— Alexandre não se sente atraído por
ela. Ele te ama, Fê.
— Como você sabe? Ele te disse
alguma coisa? Você viu algo?
— Eu só... só sei. — desconversei. —
Sou boa em analisar as pessoas. O Alexandre só vê a garota como uma amiga
mesmo. Ele estava até pensando em apresentar o Roger a ela.
— Sério? Ele está pensando isso,
mesmo?
— Bom, nã... não sei se ele está
pensando isso, né? Não sou telepata! — ri de maneira nervosa — Mas o vi
conversando com o Roger sobre isso.
Bocejei fingindo sono.
— O.K., acho que vou indo. Estou tão
cansada, e amanhã preciso entregar um trabalho de literatura para um cara
bonitão do 6º semestre.
— Quer uma carona? — Fernanda
ofereceu — Vi que você está sem sua lata-velha, quer dizer, sem seu carro!
— Muito engraçado! Minha lata-velha
é bem útil quando você quer encontrar com o Alex no motel, né?
— Sssshhh, fala mais baixo! —
Fernanda pediu quase tapando minha boca com as próprias mãos. — Certo, você
venceu! Ele é velho, mas é útil. Mas então, vai querer uma carona?
— Na verdade não. Prefiro ir a pé.
— Te levo até a porta.
Estava na sala quando Dona Sônia apareceu
com uma sacola na mão.
Com cabelos cobertos por um lenço,
usando um vestido floral e tamancos de salto, Dona Sônia era uma dona de casa
sempre muito vaidosa. Usava salto até quando fazia faxina.
— Querida, apareci na hora certa! —
ela disse sorrindo para mim — Coloquei em uma vasilha um pedaço de empadão de
carne, e na outra tem um pedaço generoso de mousse de limão. Tome! — ela
concluiu me entregando a sacola.
— Mãe! — Fernanda ralhou,
envergonhada, pensando que eu me ofendia toda vez que a mãe dela separava
comida para eu levar. — Desculpa, Luisa, já pedi pra ela parar com isso.
— Tudo bem, Fê. Obrigada, Dona
Sônia! Não precisava, mas fico muito agradecida. Sei que está tudo gostoso.
— Modéstia à parte, está mesmo! E
pare de bobagens, Fernanda! Só me preocupo com a garota!
— Não, mãe, você a trata como uma
morta-de-fome!
Fernanda nunca gostou da maneira
como a mãe dela me tratava, e sempre me “defendia”, ainda que não fosse
necessário. Dona Sônia, da maneira dela, sentia a necessidade de suprir a falta
de uma mãe, e com isso me paparicava como podia.
— Fernanda! Não seja grosseira! —
Dona Sônia me puxou para um abraço e me manteve ali enquanto falava. — Não
ligue para sua amiga, querida. Eu só quero que você fique bem, porque você
merece ser feliz, minha filha. E você será!
Senti meus olhos encherem de
lágrimas, mas me contive e pisquei várias vezes para me livrar do excesso de
umidade nos olhos.
Ninguém nunca me dissera que um dia
eu seria feliz. Eu mesma nunca me imaginara de tal forma. O que eu desejava
para mim se resumia em conseguir me manter financeiramente. Sonhar era uma
regalia que eu nunca me atrevi a usar. A realidade sempre manteve meus pés
presos ao chão. Emocionei-me com aquele desejo tão inocente e puro, mas logo me
afastei do abraço.
— Obrigada, Dona Sônia, a senhora é
como uma mãe.
Ela sorriu para mim e lançou um
olhar repreensivo para a filha.
— Está ficando tarde. Preciso ir.
Tchau, Fê. Até logo, Dona Sônia. E obrigada novamente.
— Tchau. — Elas me disseram em
uníssono, enquanto eu saía com pressa, antes que notassem meus olhos úmidos.
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